17.10.06

Filmes & Livros

Projeto desenvolvido pelos alunos de licenciatura no 1º Semestre 2001
Autores:Dirceu Villa de Siqueira LeiteJoão Batista Vieira Jr.Renata Maria de BarrosSérgio Augusto Gouveia Jr.Sylvia H. L. Takeda

"O livro é muito melhor". Ouve-se com freqüência esse tipo de afirmação de quem vê o filme, lê o livro, compra a camiseta. É de bom-tom e universalmente aceito que o livro de origem de um filme seja melhor que o filme, diferente, poucas vezes, e, menos ainda, pior. Mas há muitos filmes que são diferentes dos livros (por opção evidente do diretor e do montador, quando não forem a mesma pessoa; às vezes, como no caso que vamos comentar, não se teve a mínima escolha quanto a diferenciar livro e filme) e há aqueles que são muito melhores que os livros de onde vieram. Não é difícil experimentar a sensação de que um filme funciona como resumo de um livro: esse é o caso mais infeliz da transposição de uma coisa para a outra, pois o roteirista e o diretor não sabem o que fazer com aquele amontoado de ações, e o transformam, por exemplo, numa corrida vertiginosa para aqueles que leram a obra original — a adaptação de Frankenstein, de Mary Shelley, na última versão que ganhou e que levava no título o nome da autora falecida, é um bom exemplo: inocula-se didatismo científico sobre o século XIX (experimentos com eletricidade), põe-se a ação num desespero histérico, todos ficam loucos e o filme acaba.
A sensação de que o filme é diferente pode ser positiva ou negativa para o próprio. Podemos dizer que o autor assumiu que, no cinema, aquilo terá de ser outra coisa, seja por motivo de linguagem, seja para a obra se adaptar a circunstâncias que não aquelas da origem, seja para corresponder a determinado ponto de vista do responsável pela película, entre outros milhares de motivos possíveis. E foram diferentes os filmes que Stanley Kubrick tomou dos livros: A Laranja Mecânica é diferente do livro de Burgess; 2001, de Arthur C. Clarke, diferente também no filme, e O Iluminado desagradou tanto a Stephen King que ele próprio produziu outro, anos mais tarde, para ser a "versão fiel" do seu livro — este é um caso particular, uma vez que o filme de Kubrick não só é diferente como melhor que o da "versão fiel", de onde concluímos que ele encontrou no livro algo adequado a sua linguagem cinematográfica. O argumento de King sobre o filme de Kubrick até faz sentido, pois diz que o personagem de Jack Nicholson, Jack, precisava ser um sujeito normal que aos poucos se tornasse mais e mais perturbado até atingir a monstruosidade, e Nicholson desde o início parece um louco até quando caminha na rua. Enfim, o filme é mais misterioso porque não se propõe a defender nenhuma tese do tipo: "Somos mesmo todos uns pirados à espera de oportunidade."
Quando enfim o filme é melhor, temos a sensação de que o diretor e o roteirista e o montador e o fotógrafo e os atores, todos, sacaram da obra original tudo o que prestava e deixaram o lixo de fora. Isso é um tipo de crítica. Crítica por meio da criação. A Rainha Margot, Drácula (versão de Coppola), ou Cyrano de Bérgerac (com Depardieu), para utilizar três filmes famosos, retiram toda a retórica imprestável ou excessiva dos livros de Dumas, Stoker e Rostand para ficar com aquilo que constitui a força dramática pura de cada história. No caso de Margot há, além de tudo, uma inteligente (quase virtuose) compressão dos intermináveis colóquios sentimentais e um desvio da veia romântica para um desenvolvimento das trapaças políticas, para falas mais objetivas e menos floreadas; o caráter de Margot se modifica, para torná-la uma mulher ainda mais sensual e forte do que a do original (basta comparar a cena em que seu marido protestante, Henri de Navarre, casado apenas por política – "foi o casamento do protestantismo com o papa", ele diz – vai ao quarto de Margot na noite de núpcias, sua esposa, pedir aliança política, e ela está com o amante, o duque de Guise); a opção de Chéreau, que vem do melhor teatro francês, é dar às cenas um desenho cenográfico que dê relevo aos personagens, surgindo enormes na tela, representando a renascença francesa numa versão que busca o realismo de reis e nobres suados e rudes, o que, enfim, é bem característico dos anos 90; Isabelle Adjani brincava que esse era o primeiro filme de época com visual grunge.
Stoker também sai beneficiado no cinema. Coppola, em Drácula, inverte muitas cenas, suprime outras e reconstrói a história focalizando a ligação entre sexo e morte, e espalhando insinuações sexuais em várias cenas (como na que Mina Harker acaricia a orelha do lobo); o filme só perde para as primeiras cinqüenta páginas do romance, onde o diário de Jonathan Harker revela passo a passo uma atmosfera muito convincente e incomum de terror, pois, ao mesmo tempo, é livro de viagens, com os personagens típicos de uma região então ainda pouco conhecida, o leste europeu, e um suspense do melhor estilo, aquele que arrepia sem que nada de fato aconteça, mas se fundamenta na expectativa crescente para o horror. Essa expectativa o filme não cria, menos sutil nesse aspecto, com imagens de impacto imediato, como cenas de blasfêmia e profanação, vampirismo, etc.
A questão da fidelidade ao texto original, em si já discutível, como vimos com Kubrick, ganha outros matizes. Ao diretor que pretende ser fiel a uma obra qualquer cabe fazer escolhas.
O filme sempre tende a ser sintético, e por isso opera por exclusão; mas através dos figurinos, gestos, comportamento, se recria a época. A escolha dos atores já permite identificar o caráter do personagem (como no caso que comentamos de Jack Nicholson), por exemplo: Lawrence Olivier como Darcy em Orgulho e Preconceito já sugere o perfil aristocrático do personagem sem que seja preciso dizer uma palavra (embora Olivier gostasse de dizer muitas e de um jeito espalhafatoso. Ele próprio conta que, acostumado ao teatro shakespeareano da época, foi fazer seu primeiro filme; bastou dizer as primeiras palavras para o estúdio inteiro cair na gargalhada, ele parecia um pavão enorme). Em Orgulho e Preconceito a câmera passeia por imensas propriedades, e a cena do baile permite ao espectador perceber não só o orgulho como o preconceito dominante na época e no lugar, além das relações econômicas que baseiam o trato social.
Acontece também de um filme se conservar fiel ao livro por outras vias de compensação, como no caso de O Beijo da Mulher Aranha, que adapta a obra de Manuel Puig. Troca-se o país em que a ação ocorria — Argentina por Brasil —, tanto um como o outro em apuros políticos na época em que a ação se desenrola (década de setenta, ditaduras militares). Os dois personagens, um homossexual e um político materialista, Molina e Valentim, são caracterizados como se encontram no livro. Nesse caso, a novela de Puig se oferece de bandeja para a adaptação, uma vez que é abundante em diálogos (parênteses: essa é uma questão que, insistiremos adiante, vale a pena discutir com os alunos); mas tem notas de rodapé intransponíveis, que são como uma tese sobre o homossexualismo. A despeito disso, os recursos do cinema compensam o fato porque há um ator encenando um gay, o que é muito diferente de ler um tratado. Outras compensações surgem mediante os filmes que, no livro, Molina narra para seu colega de cela, pois na tela são recriados através da imaginação do personagem. O número de filmes que Molina conta é reduzido em relação ao do livro (no filme ele narra só dois), mas aí se aplica a mesma lei de concisão que comentaremos a respeito das Ligações Perigosas. Como numa tradução, podemos ver, opera-se um número de compensações, ou "equivalentes" fílmicos para aspectos específicos de uma narrativa escrita.
François Truffaut é outro cineasta a ser comentado brevemente, pois seus filmes aqui comentados ou aludidos podem todos ser usados com proveito didático. Truffaut disse que se deve fazer filmes a partir de romances que não tenham funcionado completamente; o caso é que Truffaut faz exatamente isso: elabora um roteiro a partir de romances mais ou menos desconhecidos, cuja temática lhe seja particularmente cara, reformulando a narrativa para o cinema e para seus próprios fins. Os livros eram importantes para Truffaut, que sempre teve uma relação direta com a literatura; não é por outro motivo que dirige Fahrenheit 451, um dos filmes que propomos como repertório passível de ser usado em sala de aula. A história de Ray Bradbury é uma crítica à intolerância e à censura, inventando um mundo em que os bombeiros não apagavam o fogo, mas o ateavam — na casa de quem quer que tivesse a ousadia de possuir essas encardernações com palavras. No filme de Truffaut, vemos a TV interativa já funcionando como hoje em dia, como um alimento das fantasias dos idiotas. Montag, o personagem principal, bombeiro, começa a duvidar dos princípios da instituição por causa da vizinha, bela ela mesma e dona de uma bela biblioteca também. A atividade de ler bons livros é quase uma quimera para desocupados — podemos dizer que, infelizmente, a crítica permanece atual, ou, talvez, mais atual do que antes. Truffaut também fez o caminho às avessas: a partir de um filme, O Homem que Amava as Mulheres, de sua autoria, escreveu o romance de mesmo nome, revelando-se um hábil narrador literário, revelando que a convivência com os livros era mais do que apenas uma fonte para filmes.
Portanto, o que queremos apresentar é a relação entre os dois meios, esta: amistosa, fraterna, mas tensa, ou se soubemos dizer bem, de uma tensão amorosa, como acreditamos que há em todo amor genuíno.
Ligações Perigosas
Escolhemos este filme para uma demonstração. Não implicamos com isso que por necessidade seja este a ser tratado em sala de aula (todos os outros mencionados neste trabalho podem igualmente ser utilizados com proveito); mas resolvemos que era adequado porque, tendo sido escrito, como romance, sob a forma de epístolas de personagem a personagem, isto é, o famoso romance epistolar, exigiu quase uma recomposição completa para ser transposto para a outra linguagem, a do cinema. Ensina também a respeito da linguagem dramática em relação à linguagem do romance. Não se deve ignorar que o trabalho de um poeta costuma ser diferente do de um prosador e que são ambos diversos do de um dramaturgo. Além disso, não menospreza os alunos, pois é um livro impecavelmente bem escrito.
A estrutura do livro parece simples inicialmente, porque afinal de contas trata-se de um monte de cartas. Mas a dificuldade reside aí: sendo um monte de cartas, Laclos teve de dar um jeito de que funcionassem tanto para a verossimilhança de serem cartas de personagem a personagem, quanto para a necessária coerência que faria disso um romance. Então, a primeira coisa a se identificar é uma ordem, a ordem em que são revelados os andamentos das atividades dos personagens que, como não havia TV nem telefone ou internet, se correspondiam loucamente.
Por que as ligações (ou relações) são perigosas? Porque os personagens tramam. Toda vez que alguém trama alguma coisa, essa coisa é seguramente perigosa. Valmont não ama ninguém, perverte algumas garotas e azara damas casadas; Mme. de Merteuil não lhe fica atrás. A tese é a de que são uns desocupados extremamente refinados cuja tendência natural, porque social (lembrar Rousseau), é a de se transformarem em monstros. A conquista é uma coisa excitante, como provam os exemplos mitológicos de Don Juan e Casanova, em que Don Juan é um jovem pluriconquistador vulgar e que Casanova é um pervertido afável. Nos dois casos, o desespero é por sempre renovar a experiência da sedução que se conclui com a rendição do objeto do desejo – ou o troféu da auto-estima. O sexo se torna uma educação para o cinismo, e um meio de vencer e humilhar, como já sabemos bem de slogans como "sexo, dinheiro e poder", pois assim como as outras práticas implicadas, você pode muito bem pressupor o motivo de uma força primitiva em todo cálculo do homo sapiens.
A despeito dessa convincente teoria dos hormônios, ou até por causa dela, o livro se enovela em casos simultâneos. Tudo parte de uma vingança, no caso de Mme. de Merteuil, que quer ir à forra com um amante desafeto, prestes a casar com a filha virgem de uma ex-amante de Valmont, seu colega de aventuras. Valmont está enrolado em desvirtuar a bela e ridícula Presidenta de Tourvel, mulher casta e devotada à religião e ao marido, hospedada na casa de campo da tia de Valmont. Ele se nega a tomar a virgindade da menina segundo o plano da Mme. de Merteuil, mas encontra problemas com sua sedução, pois a mãe da menina virgem (senhora que fora sua amante) se corresponde com a Presidenta de Tourvel apenas para desmoralizá-lo. Ele acaba por aceitar o trato da amiga, agora por uma questão pessoal de vingança também; MAS a Mme. de Merteuil não perdeu tempo e pôs um jovem professor de música apaixonado pela jovenzinha, que lhe corresponde, apesar de prometida ao desafeto de Mme. de Merteuil (começamos a perceber que esses laços vão dar nó).
O livro passa às seduções: Valmont engana, seduz e desvirgina Cécile, que a esta altura está, é compreensível, bastante confusa em relação a ligações amorosas; Mme. de Merteuil faz um trato com o colega, dizendo que se ele conquistar a carolíssima Presidenta de Tourvel, ela própria se concederá em prêmio (enquanto isso, seduz o professor de música). Valmont consegue seu intento com muito custo e vai cobrar seu prêmio; para sua infelicidade, a sra. de Merteuil percebe que ele está apaixonado por sua presa e o despreza: inicia-se uma guerra entre os dois colegas. A Presidenta de Tourvel definha quando Valmont, para manter sua fama, a despacha de si; Valmont definha propositadamente num duelo com o professor de música (ofendido por Valmont ter desfrutado de noites com Cécile); Valmont entrega cartas ao vencedor que, segundo ele, se reveladas, vão expor toda a verdade; as cartas são essas de que, diz o autor, o livro é feito; as cartas arruínam a reputação parisiense da Mme. de Merteuil que, vaiada em público, passa a definhar também. Eis o nó.
Há um caráter moralizante na obra, combinado a um caráter político (já está na hora dos nobres se retirarem), e um pequenino caráter ambígüo, que é preciso verificar se os alunos entenderam. Valmont tem uma duplicidade, ele ama e não pode porque, diríamos num jargão bastante popular, tem de manter a fama de mau. Sem isso o romance seria o resumo feito acima, até talentoso, mas desprovido da única coisa dá sentido ao livro, a graça (não significando coisa para o riso, graça como o movimento único que uma obra de arte costuma ter). Mas vamos passar ao trabalho hipotético na sala de aula.
Como fazer
O mais complicado é sempre o modus faciendi. Temos consciência da encrenca, pois chegamos a discutir o que seria mais conveniente: livro antes, filme depois, ou o contrário. Inicialmente pensamos a coisa como uma atividade estanque em seus próprios objetivos, mas a professora teve a felicidade de nos apontar uma estruturação que preparasse os alunos para o que haveria de ser feito. Temos consciência de que não pode tomar muito tempo do currículo, uma vez que se presta a estabelecer apenas os estatutos básicos de cada arte, o cinema e a literatura, e a relação que desenvolvem. Como a limitação disso é bastante clara, as sugestões todas incluídas aqui representam, na verdade, um repertório. É assim a respeito do Cyrano, do Fahrenheit, do Caro Michele, do Vidas Secas, do Rainha Margot, e do enfaticamente recomendado Ricardo III (tanto a versão de Al Pacino quanto a protagonizada pelo magnífico ator britânico Ian McKellen).
Enfim. Decidimos que o livro deveria vir antes. É muito provável — não dizemos certo, mas provável, conferindo o benefício da dúvida — que os alunos desanimem diante da tarefa de ler algo que, de uma certa forma, já conheceram de maneira bem menos trabalhosa. Até mesmo para que observem todo o impacto da transformação de uma coisa na outra é interessante ter lido o livro antes (como em Vidas Secas. No filme, a cadela Baleia é uma outra personagem, embora com o mesmo poder de comoção — que pode ser analisado com muito proveito através da cena da morte nos dois. Ou o Soldado Amarelo, lembrando que o filme é P&B). É algo que pode ser planejado como tarefa de férias; mas será preciso desenvolver antes uma relação saudável com os alunos, para que eles não desprezem seu pedido como uma empulhação. Evidentemente, nenhuma situação, por mais satisfatória que seja, nunca vai lhe dar 100% de leitura, alguns moleques não vão ler mesmo, não importa o que você faça. Entretanto, a porcentagem de leitores vai depender da sua capacidade de convencimento.
Com os que leram (com os que não leram também, embora eles devam ficar um pouco embotados) seria interessante conversar em aula sobre o livro, mas conversar inteligentemente, e não fazer uma averiguação banal de "que personagem fez o quê na página tanto", que não passa de uma idiotice muito grande e de uma grande perda de tempo, sua e do aluno. É um escrutínio barato e patético. Mas pode-se discutir o caráter dos personagens, o nível de empatia do aluno com eles, como foram imaginados, se os alunos têm alguma idéia de como as pessoas, ou ao menos os nobres, se vestiam no século dezoito; pode-se falar sobre Laclos, o autor do romance, que ele era já de uma categoria de pessoas que começava a ascender socialmente (por causa do trabalho no Exército), mas que isso tinha um limite, pois estamos falando do Ancien Régime, e a sociedade, como sabemos, possuía uma organização até certo ponto estanque, que parava no nome e no sangue da família; que Laclos foi adepto da Revolução Francesa, mas que na época do Terror quase perdeu a cabeça, etc. Que ficou meio malvisto quando publicou As Ligações Perigosas, porque alguns nobres se ofenderam, que o livro foi um grande sucesso; e é possível discutir a questão da verossimilhança, uma vez que Laclos declara não ter escrito o livro, mas coligido as cartas; se ele consegue fingir bem isso, ou seja, se quando uma garota de quinze anos redige uma carta ela parece emocionalmente diferente da mulher de quarenta anos que também o faz, e se é diferente do estilo do experiente sedutor, e o que é que demonstra isso e aquilo, etc. Enfim, rende uma boa aula de leitura atenta do livro. Deve-se perguntar e realmente querer saber qual momento os alunos mais gostaram, se gostaram ou não do livro e por quê.
Concordamos que o número de três livros-filmes poderia ser trabalhado ao longo do ano com proveito. Vidas Secas e Ricardo Terceiro são o complemento dessa nossa hipótese. Vidas Secas por ser perfeito, ou seja, geralmente é pedido no vestibular, é um dos melhores livros já escritos em prosa, resultou num ótimo filme (até certo ponto, de extração tropicalista) e está cheio de questões fundamentais a serem discutidas. Ricardo Terceiro porque Al Pacino fez um grande filme que é, ao mesmo tempo, representação cinematográfica e teatral, ambiente de ensaio e estudo de caráter e técnica de Shakespeare, sem — e isso é talvez o melhor — o uso do blá blá blá teórico dos eruditos superversados no dramaturgo. Orson Welles já disse que se escreveram bibliotecas inteiras sobre Iago, todas sem compreendê-lo, nem às suas ações, mas, diz ele, qualquer um que tenha tido mais vida que caminhadas à biblioteca reconhece um hipócrita, um impostor de si mesmo. Orson Welles está certo. Por comparação, os alunos podem ver Ricardo Terceiro com Ian McKellen, versão transposta para uma espécie de recriação da década de quarenta, filme que surgiu no fim dos anos noventa, quando o cinema começou a produzir uma série de filmes transpondo Shakespeare para alguma outra época, para algum outro contexto, sugerindo sua imortalidade. Pode-se discutir se os alunos acham mesmo isso, e o que eles, mas principalmente elas, acharam de Leonardo Di Caprio como Romeu, etc.
Tudo isso prepararia os alunos para discutir o filme que o professor tiver eleito como o mais importante (P.S.: nos ocorre a idéia de que o professor poderia tentar discutir com a escola a possibilidade de reservar uma sala para, em algum horário fora das aulas, e de períodos em períodos, fazer funcionar uma espécie de clube cinematográfico); no caso, tratamos, como exemplo, de As Ligações Perigosas. A retórica amorosa havia chegado no nível do paroxismo, se compararmos Laclos com os trovadores da Provença, com Guido Cavalcanti no século XIII, e com os barrocos espanhóis, bastante obscuros. O século dezessete ensinara aos cortesãos que eles precisavam dizer as coisas com algum estilo, ou não dizer nada. Isso perdura na França até meados do século XIX. Frears, o diretor do filme, no entanto, se concentra nos meios da sedução e reduz o enfeite utilizado para que ela venha a efeito: seu ponto de vista é moderno, ele mantém as insinuações, mantém uma ou outra metáfora, mas o visconde de Valmont interessa a ele como um indivíduo partido entre seu dom natural para o artificialismo da sedução mórbida, e o amor que em si próprio inocula quando conhece a Presidenta de Tourvel. O individualismo narcisista moderno ganha uma versão em roupas antigas (Stephen Frears gosta do assunto. Os Imorais também vai por aí, só que sem recuar a nenhuma outra época). Enfim, o resultado, como nas tragédias gregas antigas onde algum personagem sempre se excedia (a hýbris), é desastre.
A diferença para Laclos é que ele considerava os nobres, como já dissemos, uns desocupados parasitas na decadência da elegância. A ruína nos parece menos individual do que de um grupo fechado em práticas autodestrutivas. É preciso discutir isso em sala de aula. É algo que se pode discutir desde a primeira cena: no filme, temos uma série de tomadas que mostram Valmont e Merteuil sendo vestidos por empregados e amas; Valmont escolhe sua peruca, Merteuil é encaixada em três levas de roupa; a cara dos dois é enbranquecida com talco, muito em moda na época, como as perucas, as anáguas e os decotes. A parafernália é inútil? Frears quer dizer que é bom diretor de filme de época? É claro que sim, mas ele injeta o primeiro sentido logo aí: quem precisa ser vestido por mais de três outras pessoas que até lhe catam os pêlos do nariz com pinças? A resposta para isso está na definição do caráter dos personagens.
No livro, temos a primeira carta, a de Cécile Volanges, doce menina púbere que viveu em internatos religiosíssimos, praticamente declarando a uma amiga sua a inabilidade para o mundo social, sua falta de jeito, sua timidez. Ora, sabe-se desde o título que o livro deve tratar de sedução, e a primeira carta que se lê é a de uma adolescente ingênua? É como se o autor dissesse: "Aí vem coisa pior do que vocês esperam." Quase poderíamos apostar que ela será seduzida no esquema proposto de jogo de sentimentos, e que disso virá uma catástrofe qualquer. É elementar, Watson. Pode-se concluir a partir disso que as duas obras — ainda que possamos dizer com segurança que o filme é caninamente fiel ao livro — se iniciam com extrema diferença. Em um deles, o enfoque é pérfido, é o retrato da mordomia alienante; no outro, a conclusão fica entre comovente e provocativa da inocência que será perdida.
O professor precisa apresentar os dados com cuidado, conhecendo o caminho que faz, mas partindo da perspicácia do aluno: toda informação comparativa que o aluno for capaz de esboçar será um meio de levar adiante uma reflexão fecunda a partir das diferenças de linguagem. Assim como ocorre quando comparamos um poema e um texto em prosa, acontece com a comparação entre uma produção cinematográfica e um romance: o romance contém muito mais efabulação do que o cinema, que precisa ser sintético (e ainda mais sintético que o teatro), pois as imagens são escolhidas e editadas, e a narrativa é quase que inteiramente visual e montada. A música narra, a própria palavra narra, mas o preponderante, para o cinema, é e sempre será a imagem em movimento. As artimanhas de Valmont para copiar a chave do quarto de Cécile, com a anuência dela, diante de todas as outras mulheres mais velhas da família, é um tour de force cinematográfico; é quase uma coreografia que John Malkovitch e Uma Thurman desempenham com muito humor para transmitir o que no livro pode ser descrito com vagar e captado pela memória numa duração bastante espichada.
Você pode demonstrar também o alongamento de certa passagem do livro para o cinema. O caráter narrativo do cinema é muito flexível, pois lida com o tempo de um modo impossível para o livro. Isso não é necessariamente um privilégio do cinema nem do livro: trata-se de uma diferença, apenas. Se se tomar a cena em que Valmont vai aos pobres fazer caridade diante do desajeitado espião da Presidenta de Tourvel, será possível perceber que a seqüência humorística do espião seguindo Valmont pelo bosque praticamente não existe no livro, encerrada em algumas linhas de uma carta de Valmont a Mme. de Merteuil; que Valmont é muito mais seco no filme, numa afetação natural — que bela expressão — de prodigalidade. Por que isso? Porque o filme resume, nessa cena, todo o encanto que Valmont causa à Presidenta de Tourvel por suas "obras espontâneas de caridade", e, portanto, para que atinja o mesmo efeito que no livro toma uma série de eventos e cartas, o diretor opta por economizar os recursos nessa cena que, apesar de mais extensa que a do livro, sintetiza em si diversos eventos.
Há outras coisas que podem contar na decisão de se filmar um livro, como no caso de um outro romance epistolar, o Caro Michele, de Natalia Ginzburg. A autora promoveu uma retomada do gênero, em desuso, e o conflito de gerações, a proximidade e a distância entre Michele e seus familiares. O filme, que reproduz a história do livro, isto é, a de Michele, um filho perdido, que vai embora de casa ainda jovem, vive em lugares desconhecidos pela mãe, com amigos misteriosos, chega a casar-se num lugar longínquo e morre em circunstância pouco clara. A história pode ser a mesma, mas o foco do filme não incide, como parece evidente, sobre a retomada do romance epistolar, e sim sobre o drama pelo qual a família passa, os esforços que fazem para ter Michele em casa novamente.
Assim também Nunca Te Vi, Sempre Te Amei (em que pese a infelicidade do nome em português) é diferente na abordagem do uso das cartas. Elas existem no filme, levando a ação adiante, juntamente com o uso do monólogo. Tanto uma solução como a outra são mais simples do que a utilizada por Frears, que transpõe as linguagens, quase como se traduzisse uma na outra. Deve-se chamar a atenção dos alunos, quando se debater filme e livro, para esse aspecto. Eles percebem como o número de ações se reduz e que essa restrição visa ao efeito? Percebem que a imagem tem o privilégio de fazer com que a ação deslize mais rapidamente pelos nossos olhos, sem a necessidade de comentários, em geral totalmente ausentes do cinema (ou do melhor cinema)?
Nesse caso hipotético em que trabalhamos com os livros mencionados, seria o caso de perguntar se os alunos acham que uma peça teatral (como Ricardo III) precisa ser mais ou menos adaptada para o cinema. Podemos dizer que tanto o núcleo do drama quanto da película é a ação, seja ela qual for, de que natureza for; que, em geral, teatro e cinema compartilham a presença forte de diálogos e atitudes dos personagens, ou ao menos atitudes dos personagens — há modernos e contemporâneos sofisticadíssimos que empinam o nariz e dizem não precisar de nada disso; de fato, Beckett chegou a desafiar essa imposição, mas isso você pode muito bem mencionar como uma das coisas que o ser humano já fez diante da sua insatisfação pelo mesmo repetido.
O que é central: utilizar, como fizemos nos parágrafos anteriores, uma ou outra cena que represente bem a diferença entre as linguagens, ou a incrível semelhança; a partir disso, você poderá ensinar a construção longa do romance (exatamente como a nossa nesse trabalho) em contraste com as formas dialógicas que têm foco na ação, tanto no cinema quanto no teatro.
Haveria dois modos de fazer uma verificação disso que não enchesse a paciência dos alunos. Um deles, seria dividir a sala em grupos que preparariam um roteiro a partir de, digamos, um conto (como O Caso da Vara, de Machado de Assis, ou O Médico Rural, de Kafka), e de uma pequena peça (como aquelas peças relâmpago de Beckett, simples e instrutivas). Os alunos escolheriam dentre os textos que foram selecionados e seria possível, à la Dogma, fazer uma filmagem com câmera de mão, o que acaba sendo bem divertido. Para isso, seria necessário ensinar os rudimentos de um roteiro, que variam pouco os de uma peça de teatro e não levam muito tempo para ser aprendidos. O mais seria feito por eles, para ver o que entenderam dos exemplos discutidos durante o ano.
O outro modo de se verificar seria que eles comparassem, por escrito, um filme e um livro. Nesse caso, seria possível utilizar um livro como Vidas Secas, já mencionado, e sua versão de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de ser uma atividade interessante, acreditamos que ela envolveria muito menos os alunos do que num processo de criação ainda que bastante limitado.
That’s all, folks.
Bibliografia
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Editora Livros do Brasil, 1999.BURGESS, Anthony. A Laranja mecânica. Ediouro, 1994.DUMAS, Alexandre. Rainha Margot. Editora Campanário, 1998.GINZBURG, Natalia. Caro Michele. Ed. Paz e Terra.KING, Stephen. O Iluminado, Editora Objetiva, 1999.LACLOS, Choderlos de. Ligações perigosas. Ed. Europa-América, 1989.PUIG, Manuel. O Beijo da mulher aranha. Editora Rocco.RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Editora Record.ROSTAND, Edmond. Cyrano de Bérgerac. Editora Scipione, 1996.SHAKESPEARE, Ricardo III. Editora Difel.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Editora L&PM e Editora Europa-AméricaSTOKER, Brain. Drácula. Editora Europa-AméricaTRUFFAUT, François. O Homem que Amava as Mulheres. Editora Imago.
Obs: Todos os livros que aqui se encontram contam com tradução em português
Filmografia
BABENCO, Héctor. O Beijo da mulher aranha, (Kiss of the Spider Woman), Brasil/EUA, 1985.CHÉREAU, Patrick. Rainha Margot. (La Reine Margot), França/Alemanha/Itália. 1994.FREARS, Stephen, Ligações perigosas. (Dangerous Liaisons), EUA, 1989.COPPOLA, Francis Ford. Drácula de Bram Stoker. (Bram Stoker's Dracula), EUA, 1992.KUBRICK, Stanley. A Laranja mecânica, (Clockwork Orange), Inglaterra, 1971.KUBRICK, Stanley. O Iluminado, (The Shining). Inglaterra/EUA, 1980.TRUFFAUT, François. Fahrenheit 451, Grã-Bretanha, 1966.TRUFFAUT, François. O Homem que Amava as Mulheres (L’homme qui aimait les femmes), França, 1977.LONCRAINE, Richard, Ricardo III, Inglaterra, 1996.LEONARD, Robert Z. Orgulho e preconceito (Pride and prejudice), EUA, 1940